A ansiedade é um desses termos que se tornou lugar comum e aparece nas mais variadas expressões. Muitas vezes, o termo é usado em explicações para algumas atitudes ou surge como sinônimo para expressar algum sofrimento. Escuta-se aqui e ali coisas do tipo: “sou uma pessoa muito ansiosa, por isso fiz aquilo...”, “isso aconteceu porque sou ansiosa”, “estava muito preocupado, porque estava ansioso”. Além destas, essa categoria às vezes é citada quase como algo autônomo que governa as pessoas, como algo que, de repente, acomete o sujeito: “ah, isso é coisa da ansiedade...”. E há outros inúmeros exemplos parecidos com estes que são parte do cotidiano, em que a ansiedade é usada como um termo guarda-chuva, impreciso e genérico o suficiente para ser encaixado nas mais distintas situações, ou é usado para elucidar a causa de alguma experiência, como é o caso do exemplo “estava muito preocupado, porque estava ansioso”.
Se esta fosse somente uma daquelas expressões do dia a dia que cumprem apenas uma função de interjeição, do tipo “Ai, meu deus!”, a questão a ser abordada tomaria outro rumo. Ocorre, no entanto, que o uso do termo ansiedade como explicação causal não é apenas interjeição e, o que é muito importante, não está restrito apenas à linguagem leiga – pelo contrário, esse tipo de explicação é corriqueiro também na linguagem da psicologia e psiquiatria. Geralmente, concebe-se que a característica principal da ansiedade seja a preocupação excessiva ou antecipação de ameaça futura (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-V). Ora, se a preocupação compõe a definição da ansiedade, dizer que alguém se preocupa porque é ansioso não está tão distante de afirmar que alguém se preocupa porque é preocupado. O mesmo movimento ocorre, vez ou outra, quando se fala sobre o transtorno de ansiedade; um sujeito relata um conjunto de sintomas e o outro infere que a causa é um transtorno de ansiedade – “isso tudo ocorre porque você tem esse transtorno”. Bastante interessante esse jogo de palavras. Certamente estranharíamos se acometidos por uma dor de cabeça, ao procurarmos um médico, recebêssemos o diagnóstico de síndrome da dor de cabeça. É possível reconhecer que estabelecer uma relação entre uma preocupação ou alguma outra característica à ansiedade seja um ponto de partida para abordar uma vivência, mas não mais que isso.
Essa simplificação na linguagem para falar da ansiedade, ainda que não se restrinja a ela (voltarei a falar sobre isso em outro momento), não é subproduto da ignorância de alguém, mas parece estar atrelada às transformações nos conceitos da psiquiatria, em especial a partir da década de 80 com a publicação do DSM-III, inseridas numa longa cadeia de eventos que permitiu colocar esses termos à disposição das conversas do dia a dia. Até por volta daquela época, o conjunto de sintomas listados nos transtornos de ansiedade não apareciam reunidos como integrantes de síndromes sob uma categoria autônoma, mas estavam inseridos, em geral, na categoria das neuroses. Por ora, entretanto, não entraremos nas diferenças entre a compreensão sobre os sintomas inseridos nas neuroses e a autonomização da ansiedade como categoria diagnóstica. Nesse primeiro momento, para pensarmos um pouco sobre essa possível simplificação da linguagem para abordar as vivências e o sofrimento, podemos voltar a atenção para uma parte das mudanças nos manuais da psiquiatria.
A partir do DSM-III, as patologias psíquicas passam a ser definidas quase que somente em termos descritivos, de acordo com convenções que garantiriam confiabilidade nas informações. Isto é, em linhas gerais, as categorias clínicas ganham definições sintéticas e há listas de critérios diagnósticos que permitem ao médico inferir objetivamente sobre a manifestação das patologias. Ao que parece, haveria um esforço louvável nessa mudança. Contudo, a definição dos transtornos a partir da descrição das regularidades de sintomas numa dada população é insuficiente para explicá-los. Os manuais respondem, de maneira abreviada, à pergunta “o quê?” sem praticamente tocar no fundamental e necessário “por quê?”. E ainda que pareçam questões isoladas, elas não o são - ao refletir sobre a natureza e as causas subjacentes aos ditos transtornos, até mesmo as descrições destes podem ser reelaboradas. Isso, no entanto, nem de perto encerra a problemática contida nas mudanças inseridas pela psiquiatria após o DSM-III. No caso dessa simplificação da linguagem para falar da ansiedade, o cotidiano parece apenas acompanhar os manuais psiquiátricos, de forma que os autodiagnósticos baseados em listas de sintomas - encontradas com poucos cliques - são frequentes. Além disso, nesse mesmo movimento a psiquiatria solapou a relação entre a história de cada sujeito, sua personalidade e a constituição das formas de sofrimento.
Em certa medida, essa supressão da investigação científica entre a história das pessoas e o sofrimento é o que parece estar na base desta controversa ansiedade que explica a si mesma (o quase "estou ansioso, porque sou ansioso"). Nessa supressão do debate sobre as origens e desenvolvimento do sofrimento psíquico, a psiquiatria preencheu a lacuna sobre a natureza do sofrimento com as teses psicofarmacológicas. Ao dissimular a relação entre as vivências e os processos patológicos e organizar o DSM em síndromes, a psiquiatria recolocou em cena as teses de Emil Kraepelin - isto é, pôs no centro do debate psiquiátrico e psicológico a natureza orgânica das doenças, que não sem propósito, relacionavam-se perfeitamente à medicação produzida pela indústria farmacêutica em ascensão. E o que isso tem a ver com a ansiedade?
Uma vez ocultadas as apreciações entre personalidade, as vivências e o sofrimento, as explicações para este não escaparam das definições de manuais ou das obsoletas teses sobre o desequilíbrio químico do cérebro. No entanto, reconheço que temos aqui apenas primeiras impressões e uma versão bastante resumida dessa problemática - há ainda muito o que ser debatido, por isso este compõe apenas o primeiro dentre uma série de textos em que pretendo dialogar sobre esses temas. Afinal, será que alguém se preocupa demais porque é ansioso? Ao que indica, não. Mas digamos que sim, por ora, apenas como ponto de partida.
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