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Um pouco sobre a história da ansiedade

Há inúmeros trabalhos que localizam a história da ansiedade de ordem patológica como algo recente, datada por volta do século XIX. No entanto, a ansiedade não parece ser um fenômeno tão recente quanto pode parecer. Para citar apenas uma fração da história documentada, a ansiedade como um afeto negativo e entendida como patologia aparece em escritos gregos e romanos há, pelo menos, 2500 anos. E se estendermos a investigação histórica para outros continentes e distintos povos, é bastante provável que haja menções sobre afecções similares representadas sob outras formas.


Entre as produções greco-romanas, atribui-se ao ​​Corpus Hippocraticum (460 a.C) - uma coleção de textos médicos associada a Hipócrates - a descrição de um caso típico de fobia, a afecção de Nicanor. Segundo consta, Nicanor, ao ouvir os sons de uma flauta tocadas por mulheres, vivenciava um intenso terror. No entanto, Nicanor apenas padecia daquele medo pela noite - durante o dia, não era afetado. Outro exemplo que aparece nos escritos é o de Demócles, que também padecia de uma fobia e tinha pavor de pontes, quaisquer que fossem, das mais imponentes até as mais curtas e baixas. Nestes escritos, ainda que escritos há milênios, apesar de estar relacionada à mente, a fobia já era interpretada como uma patologia. Um outro conjunto de autores que discorreram sobre a ansiedade foram os estóicos romanos, em torno de 2100 a.C. Destes filósofos, destacam-se Cícero e Sêneca. O primeiro teria supostamente antecipado as diferenças entre "traço" e "estado" de ansiedade. Tal como os gregos, Cícero colocou a afecção de ansiedade (angor) no rol das doenças (aegritudo - a palavra em latim que correspondia à doença e seria uma tradução da versão grega, pathos), e a descrevia como uma constrição, um apertamento ou pressão na altura do peito. Além disso, não apenas Sêneca, da escola estóica, mas também Epicuro teriam elaborado ensinamentos para enfrentar os tormentos da ansiedade.


Apesar das formulações na antiguidade sobre a ansiedade, há um longo intervalo entre este período e o da época que alguns autores, como Thomas Kuhn, costumam chamar de revolução científica. No entanto, por mencionar esse intervalo não quero dizer que tenha se passado um período em que as pessoas não tenham padecido das afecções atribuídas à ansiedade, mas que durante esse ínterim as produções sobre a ansiedade possivelmente diminuíram ou - o que é mais provável - muitos dos registros escritos foram perdidos. Ao que parece, o limiar desse intervalo é situado na época das publicações de Robert Burton, no início do século XVII, que propõe novos diagnósticos relacionados à ansiedade. Apesar de sua extensa obra magna com mais de mil páginas, Anatomia da Melancolia (1621), ser geralmente relacionada, de forma equivocada, à depressão, o conteúdo do livro não somente inclui um conjunto de quadros clínicos associáveis à ansiedade como os insere numa categoria mais ampla, a melancolia. Para este autor, tristeza e medo estavam intimamente ligados. Além da obra de Burton, há naquele período diversos outros autores médicos que relacionavam ansiedade à melancolia; por exemplo, àquele momento, os ataques de pânico eram sintomas da melancolia, o que difere da concepção contemporânea da psiquiatria.


Mais tarde, em meados de 1700, Boissier de Sauvages publicou um dos últimos grandes textos médicos em latim. Considerado um dos precursores da chamada ciência moderna, o médico francês, por meio de observações clínicas, escreveu um tratado nosológico (a nosologia corresponde à área que estuda a descrição, ordenação e classificação de doenças) que continha 10 grandes categorias de doenças e 2400 doenças individuais, em que as patologias mentais eram incluídas na oitava categoria. As principais doenças relacionadas à ansiedade eram a panophobia e panophobia hysterica; a primeira seria o que hoje chamariam de pânico noturno e a segunda era descrita como pânico causado por vapores, em que sujeitos tinham experiências de pavor súbito - de repente, ao deparar-se com determinados sons ou imagens consideradas inócuas, dizia-se que o coração disparava e empalidecia-se. Quanto aos chamados vapores, estavam associados à doenças dos nervos e estão incluídos no contexto da teoria miasmática, a qual postulava que as doenças eram ocasionadas pelo ar impregnado de odores pútridos gerados por matéria orgânica. Curiosamente, essa teoria estava em voga no século XVIII e era estudada por médicos britânicos, bem à época da urbanização forçada na Inglaterra, do aumento vertiginoso do número de fábricas e dos consequentes problemas de poluição naquelas regiões. Ainda que a teoria miasmática viesse a ser substituída pela teoria microbiana, devido às insuficientes explicações etiológicas e fisiopatológicas, ela expunha a relação por vezes acertada entre um contexto insalubre e o aparecimento de doenças. Além daquelas duas, Sauvages também listou a panophobia phrontis, que era descrita como um estado constante de grande aflição, acompanhado de dores e tensão.


Ao final do século XIX e início do XX, a ansiedade poderia ser ligada a um conjunto ainda maior de categorias diagnósticas. Em 1869, George Miller Beard cunhou o termo neurastenia para descrever um estado crônico de esgotamento físico e mental, acompanhado de múltiplas indisposições, tais como impotência sexual, dispepsias, vertigens, cefaleias, insônia, sensação de plenitude gástrica e neuralgias. E talvez a maior contribuição de Beard não tenha sido a introdução do termo que apareceria em diversos trabalhos mais tarde, mas a formulação da hipótese de que os quadros nervosos, ao invés de serem explicados em termos de hereditariedade, degenerescência ou dos vapores, poderiam ser explicados a partir de condições dadas na sociedade específica em que surgiam. De acordo com o Beard, o quadro nervoso era produto do estilo de vida norte-americano - em suas palavras:

"O esgotamento energético estaria na base dessa neurose, devido à vida agitada do homem americano, estressado por uma sociedade industrial em crise de desenvolvimento".

Parte desse entendimento de Beard seria retomado depois por Pierre Janet, Emil Kraepelin, Sigmund Freud e outros autores. Para Janet, um importantíssimo estudioso da psicologia indevidamente ignorado no Brasil e em outros países, algumas das manifestações ansiosas apareciam reunidas sob o quadro da psicastenia, mas também inseridas dentro das categorias mais amplas da neurose e histeria. Segundo o historiador e psiquiatra canadense Henri Ellenberger, Pierre Janet teria sido o precursor da psicologia dinâmica e das elaborações sobre o inconsciente, o que lhe permitiu formular outras interpretações para o fenômeno que temos chamado de ansiedade. Também precursor da sistematização do inconsciente para a compreensão dos fenômenos patológicos foi Sigmund Freud, que manteve, em parte, o quadro de neurastenia introduzido por Beard, mas produziu diversos textos contendo formulações sobre a ansiedade e sua relação nas neuroses. Estes textos ainda reverberam nas compreensões atuais do campo da psicopatologia, mesmo que encobertos sob outros nomes. Por fim, podemos citar o psiquiatra Emil Kraepelin, que entendia alguns dos sintomas da ansiedade articulados ao quadro das doenças maníaco-depressivas. Para este autor, as doenças psiquiátricas eram predominantemente causadas por fatores hereditários e orgânicos, em contraposição às interpretações de correntes da psicologia e psicanálise. Esta explicação causal, aliadas à sua proposta de sistematização e classificação das doenças como síndromes, tornou-o um autor-chave na elaboração do DSM-III (Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais) na década de 80 e posteriores edições.


Num outro momento, pretendo trazer em maiores detalhes as contribuições de Freud sobre a ansiedade e as relações entre a ascensão da psicofarmacologia, da indústria farmacêutica e a psiquiatria norte-americana. No entanto, voltemos ao tema da breve incursão histórica sobre a ansiedade para reconsiderar essa exposição. Primeiro, o termo ansiedade. Essa palavra deriva do substantivo em latim angor e do verbo ango, que significa constringir, estreitar, apertar. Há quem relacione esses sentidos com a constrição ou tensão involuntária da musculatura presente nesse afeto ou ao apertamento, descrito por Cícero, sentido na altura do peito ou no pescoço. Tal como a ansiedade, a palavra angústia compartilha da mesma raiz e, portanto, aparece muitas vezes como sinônimo. Além destas, o mesmo sentido é ocasionalmente atribuído ao medo, como é o caso na obra freudiana Inibição, Sintoma e Medo (do alemão Angst, da mesma raiz indo-europeia), traduzida por Renato Zwick. Apesar de haver um debate sobre a terminologia mais apropriada, nos abstemos desse embate quase escolástico para nos concentrarmos nesse sintético percurso histórico, já que os termos isolados, de qualquer forma, revelam muito pouco quando abstraídos de seus contextos e de todo o processo em que estão inseridos.


É por um motivo similar que interpretamos com cautela uma história da ansiedade, já que operamos uma generalização de muitas obras e cadeia de eventos sob essa unidade que chamamos de ansiedade. No entanto, será que haveria, de fato, essa unidade? Aqueles fenômenos descritos por autores gregos corresponde aos mesmos fenômenos com os quais nos deparamos hoje? Isto é, a ansiedade na Roma Antiga corresponde a de nossos dias? Será que poderíamos usar a mesma palavra para falar sobre o que se passava em diferentes épocas? Em que medida essa síntese é uma elaboração anacrônica, a qual interpretamos o passado com os olhos do presente?


Essas são apenas algumas das perguntas possíveis ao avaliarmos o percurso histórico desse conceito, das quais dificilmente podemos prescindir se buscamos uma compreensão mais apurada sobre o tema. Diante disso, no próximo texto desta série sobre a ansiedade pretendo abordar um pouco dessas questões a fim de elaborar uma crítica despretensiosa dessa descrição histórica.


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