Por Daniel Friedrich Fontoura e Giulia Molossi Carneiro
No capítulo II de A Interpretação dos Sonhos, Freud anuncia aquela que talvez seja uma das afirmações mais conhecidas da psicanálise: "o sonho é a realização de um desejo". Devemos lembrar, a fim de não cair em equívocos, que em Freud, o desejo (Wunsch) é, antes de mais nada, o desejo inconsciente. Segundo Roudinesco, “tende a se consumar (Wunschfüllung) e, às vezes, a se realizar (Wunschbefriedigung). Por isso é que se liga prontamente à nova concepção do sonho, do inconsciente, do recalque e da fantasia. Daí esta definição que não variaria mais: o desejo é desejo inconsciente e realização de desejo. Em outras palavras, é no sonho que reside a definição freudiana do desejo: o sonho é a realização de um desejo recalcado e a fantasia é a realização alucinatória do desejo em si.”
No entanto, antes de apresentar a tese geral sobre o sonho, Freud argumenta a respeito de outros dois importantes elementos da teoria psicanalítica dos quais aquela afirmação depende - de que, ao contrário do que sustentava a posição hegemônica dos estudos científicos, o sonho não corresponderia a uma mera expressão de atividade cerebral fragmentada e de que o sonho seria interpretável, pois conteria um sentido. Isto é, Freud expunha uma tese contrária às elaborações dominantes e propunha ao sonho o estatuto de um fenômeno psíquico de plena validade, de forma que, em certa medida, aproximava-se do entendimento leigo quanto ao conteúdo interpretável dos sonhos, mas também se afastava dos leigos ao colocar o fenômeno do sonho no interior de um projeto de investigação científica. Sobre isso, comenta a historiadora Élisabeth Roudinesco:
“com o declínio do romantismo e o desenvolvimento de um pensamento positivista, que, como mostrou Michel Foucault (1926-1984), inscreveu a desrazão na ordem da doença, o sonho foi relegado à categoria de puro produto da atividade cerebral e, como tal, desprovido de sentido. Freud se empenharia em combater essa concepção...”
Consciencioso da difícil tarefa de exposição e investigação de suas teses, Freud tratou de antecipar, já no início da obra, alguns dos possíveis questionamentos que viria a enfrentar. No capítulo III, questiona Freud: "Encontramos outros sonhos impregnados de desejo, além desse? [Freud refere-se a um sonho próprio, o sonho de Irma]. Ou será, talvez, que não há outros sonhos senão os sonhos relativos a desejo?". E mais à frente pergunta: "Como podem os sonhos aflitivos e os sonhos de angústia ser realizações de desejos?".
Segundo Roudinesco, Freud responde à última questão com a distinção entre o conteúdo manifesto do sonho, seu relato por parte do sonhador acordado, e o seu conteúdo latente, progressivamente revelado através de sua análise. “Mas por que alguns sonhos — que, submetidos à análise, revelam ser realmente sonhos desejantes — não exprimem mais claramente esse desejo? É que o sonho é o lugar de uma deformação. O conteúdo manifesto é uma deformação do conteúdo latente, o que equivale a dizer que o conteúdo latente se dissimula por trás do conteúdo manifesto. Essa deformação é a marca de uma defesa contra o desejo veiculado pelo sonho.”
Portanto, para Freud, um sonho de conteúdo doloroso ou um pesadelo pode ser a realização de um desejo: o conteúdo doloroso é produto da deformação do que o sonhador desejava, pois há, em relação ao desejo, uma censura. Suas análises caminham, desse modo, em evidenciar como a deformação do sonho é realmente obra da censura: "o fato de os fenômenos da censura e da distorção onírica corresponderem uns aos outros nos mínimos detalhes justifica nossa pressuposição de que sejam similarmente determinados. Podemos, portanto, supor que os sonhos recebem sua forma em cada ser humano mediante a ação de duas forças psíquicas (ou podemos descrevê-las como correntes ou sistemas) e que uma dessas forças constrói o desejo que é expresso pelo sonho, enquanto a outra exerce uma censura sobre esse desejo onírico e, pelo emprego dessa censura, acarreta forçosamente uma distorção na expressão do desejo". A partir disso, ele aperfeiçoa a sua tese sobre a essência do sonho: “O sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (reprimido, recalcado).”
Poderíamos, por outro lado, propor outra interpretação para o problema dos pesadelos ou sonhos de angústia - supomos, como exercício especulativo, que nesses sonhos não necessariamente haja a realização de um desejo. O sonho de Irma, do próprio Freud, nos fornece um primeiro modelo a ser analisado, ainda que o autor não reconheça esse sonho como de ordem da angústia: "Tomemos, por exemplo, o sonho da injeção de Irma, que abordei exaustivamente. Não foi, de modo algum, de natureza aflitiva, e a interpretação mostrou-o como exemplo marcante da realização de um desejo". Consideramos a hipótese de que a angústia (ou medo) não se relaciona apenas ao papel da censura, mas supõe-se que possa estar imbricada na formação do sonho cumprindo uma função criativa. Em suma, conjectura-se que o sonho possa ter natureza aflitiva. Dessa forma, antes de prosseguir aos elementos que remetem à angústia no sonho de Irma, supomos que a seguinte formulação de Freud não corresponde a uma verdade irrevogável: "Vemos agora que isso é possível, se a distorção do sonho tiver ocorrido e se o conteúdo penoso servir apenas para disfarçar algo que se deseja. Tendo em mente nosso pressuposto da existência de duas instâncias psíquicas, podemos ainda dizer que os sonhos aflitivos de fato encerram alguma coisa que é penosa para a segunda instância, mas que, ao mesmo tempo, realiza um desejo por parte da primeira instância. São sonhos de desejos, na medida em que todo sonho decorre da primeira instância: a relação da segunda instância com os sonhos é de natureza defensiva, e não criativa".
Considerando a possibilidade de que caiba à angústia um papel mais importante que Freud atribui, podemos retomar o sonho de Irma: “O que vejo na garganta: uma mancha branca e cornetos nasais recobertos por uma crosta. A mancha branca lembra difterite, e, assim, a amiga de Irma, mas também a doença grave de minha filha mais velha há mais ou menos dois anos, bem como todos os sobressaltos daqueles tempos difíceis. As crostas nos cornetos nasais fazem lembrar uma preocupação com minha própria saúde. Naquela época, eu fazia uso frequente de cocaína para controlar incômodos inchaços nasais e soubera poucos dias antes que uma paciente que fazia como eu desenvolvera uma extensa necrose da mucosa nasal. A recomendação do uso de cocaína, que eu fizera em 1884, também me rendera sérias recriminações. Um caro amigo, já falecido em 1895, acelerou o seu fim ao abusar dessa droga”. Mesmo que Freud negue uma natureza aflitiva ao sonho, o trecho acima, em que ele descreve uma fração dele, o permite elaborar questões delicadas, que não podem ser ignoradas tão prontamente. Por exemplo, o sonho remonta à preocupação com sua saúde e o tratamento com seu amigo, Fliess, por conta de sua enfermidade na garganta. E no mesmo trecho, relembra a morte de um amigo (Fleischl), cujo trágico destino Freud teria influenciado ao recomendar suas ultrapassadas concepções sobre o tratamento com uso de cocaína.
Apesar dessas supostas manifestações aflitivas no sonho, o que permite a Freud negar um papel preponderante e criativo da angústia nos sonhos, e, portanto, manter a hipótese de que todo sonho é a realização de um desejo, é a sua concepção quanto à relação entre a angústia e a libido. Para Freud, no momento em que se debruça sobre o estudo dos sonhos, a angústia seria um subproduto da libido: "Já que existe estreita ligação entre a angústia nos sonhos e nas neuroses, ao examinar a primeira precisarei referir-me à última. Num trabalho sucinto sobre a neurose de angústia (Freud, 1895b), argumentei há algum tempo que a angústia neurótica se origina da vida sexual e corresponde à libido que se desviou de sua finalidade e não encontrou aplicação. Desde então, essa fórmula tem resistido à prova do tempo, permitindo-nos agora inferir dela que os sonhos de angústia são sonhos de conteúdo sexual cuja respectiva libido se transformou em angústia".
Entretanto, anos depois da publicação do trabalho sobre a neurose da angústia, o próprio Freud admite a necessidade de rever a sua fórmula, no ensaio "Inibição, Sintoma e Angústia", publicado em 1926. Neste texto, além de argumentar em resposta a algumas formulações de Otto Rank, Freud reintroduz e reformula alguns conceitos, como é o caso de defesa: "No contexto das discussões sobre o problema do medo [angústia*], retomei um conceito – ou, dizendo mais modestamente: um termo – do qual me servi exclusivamente no início de meus estudos, há trinta anos, e que depois abandonei. Refiro-me ao conceito de processo defensivo. Na sequência, eu o substituí pelo de recalcamento, mas a relação entre ambos permaneceu indefinida. Penso agora que recorrer ao velho conceito de defesa trará uma vantagem segura se estabelecermos que ele seja a denominação geral para todas as técnicas de que o eu se serve em seus conflitos que eventualmente levam à neurose, enquanto “recalcamento” continuará sendo o nome de um desses métodos defensivos específicos, que em consequência da orientação de nossas investigações foi o primeiro a conhecermos melhor. [...] A retomada do conceito de defesa e a limitação do conceito de recalcamento levam em conta um fato conhecido há muito tempo, mas que ganhou importância devido a algumas descobertas mais recentes. Tivemos nossas primeiras experiências sobre o recalcamento e a formação de sintomas com a histeria. [...] Essas experiências são razão suficiente para reintroduzir o velho conceito de defesa, que pode abranger todos esses processos de igual tendência – proteção do eu contra exigências impulsionais –, e subsumir-lhe o recalcamento como um caso especial".
Tão importante quanto a reconsideração sobre o recalcamento como caso especial do processo defensivo é a reformulação sobre a relação entre libido e angústia, pois esta aponta para uma contradição mais evidente com a proposição exposta em A Interpretação dos sonhos. No apêndice A ("Modificação de Opiniões Expressas Anteriormente") do texto de 1926, Freud diz: "A concepção de medo [angústia] defendida neste estudo afasta-se um tanto daquela que até agora me parecia justificada. Anteriormente, eu considerava o medo como uma reação geral do eu sob as condições do desprazer, buscava sempre justificar seu aparecimento economicamente e supunha, apoiado na investigação das neuroses atuais, que a libido (a excitação sexual) rejeitada ou não empregada pelo eu encontra uma descarga direta sob a forma de medo. Não se pode ignorar que essas diferentes determinações não combinam bem, pelo menos não derivam necessariamente uma da outra. Além disso, resultava a aparência de uma relação especialmente estreita entre o medo e a libido, que, por sua vez, não se harmonizava com o caráter geral do medo como reação desprazerosa".
Mesmo que Freud não tenha proposto quaisquer reformulações sobre os sonhos naquele texto, nos parece que as novas considerações de 1926 alteram sobremaneira algumas das concepções presentes no texto de 1900. No que diz respeito à hipótese colocada aqui, ao confrontar Freud com o próprio, não se afigura de todo implausível considerar a possibilidade de que a angústia cumpra um papel mais elementar de que aquela sugerida por Freud inicialmente, isto é, um lugar criativo no inconsciente que emerge nos pensamentos oníricos. Poderíamos considerar a possibilidade, por exemplo, de que aquilo que Freud concebe por distorção do conteúdo recalcado pelo ato de censura teria uma outra explicação - ou, ainda, de que o conceito de angústia e sua relação com o inconsciente não está devidamente elucidada. Não nos cabe, entretanto, num breve ensaio, fazer quaisquer afirmações mais contundentes sobre estes questionamentos ou sobre a concepção freudiana de que o sonho seria a realização de um desejo, mas ao menos nos permite colocar algumas interrogações e fazer circular um debate caro à psicanálise.
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Referências:
Freud, S. (1996) A interpretação dos sonhos (I). In J. Stratchey (Ed. E Trad.), Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996a. (Trabalho original publicado em 1900).
Freud, S. (1996) A interpretação dos sonhos (II). In J. Stratchey (Ed. E Trad.), Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900).
Freud, S. (2016). Inibição, sintoma e medo. (Renato Zwick, trad.). Porto Alegre, RS: L&PM. (Trabalho original publicado em 1926).
Roudinesco, É. (1998). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
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*As transcrições usadas ao longo desse ensaio foram retiradas de textos de diferentes traduções, de forma que o termo "Angst", do alemão, ora aparece como "medo" e, por vezes, é traduzido como "angústia". Ambos os termos, entretanto, referem-se à mesma palavra no alemão.
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